terça-feira, 24 de junho de 2008


“RENOVAÇÃO E DOUTRINA?”

Ao ler O Batista Nacional (períódico da Convenção Batista Nacional), referente ao trimestre janeiro/fevereiro/março, causou-me muita impressão o artigo “Renovação e Doutrina”, primeiro pelo fato de, a despeito do título, o conteúdo em pouco tratar do que se propõe, Doutrina e Renovação. Assinalei em meu exemplar alguns pontos que, em minha opinião, parecem ser confusos e contraditórios. E munido de intenções que apelam para o bom-senso e coerência dos fatos, resolvi neste “contra-artigo” elencar alguns tópicos, dentre os muitos que gostaria de mencionar, mas o espaço reservado a publicação tem limitações que devem ser respeitadas. Sendo assim, segue-se um resumo do que gostaria de comentar acerca do que, conforme o meu ponto de vista, sou forçado a não concordar:

PASTORES “RENOVADOS”
1º. Não concordo com o artigo “Renovação e Doutrina”, quando o mesmo expõe de forma diminutiva e pejorativa os “pastores renovados”, como sendo, dentre outras coisas, portadores de uma mensagem fazia de conteúdo bíblico. Vejo que, em primeiro lugar, seria muito relevante para nós entendermos a que se refere o artigo quando fala de “conteúdo bíblico”, pois se para o mesmo isso for sinônimo de uma verborragia fundamentada em termos das línguas originais disparados nos púlpitos das igrejas para uma mera exposição performática de conceitos teológicos, nos faz compreender melhor a acidez com a qual a crítica foi construída, e a raquítica reflexão acerca da Igreja e sua pragmática que é tecida em todo o transcorrer do artigo.
No artigo o autor registra a afirmação de que não confiaria o púlpito de sua igreja “a maioria dos pastores renovados, ou quase todos”, em virtude de os mesmos não terem suficiente perícia nas artes de interpretação da Bíblia (Hermenêutica e Exegese) e serem portadores de práticas ministeriais duvidosas (unção com óleo, atos proféticos, etc.). Particularmente conhecemos uma multidão de pastores pentecostais que pregam com esmero e dedicação a Palavra de Deus e exercem o ensino bíblico com profundo temor e tremor. Não vejo que sirva como critério seguro para confiar o púlpito da igreja a um pregador o fato de ele ser pentecostal ou histórico, e sim seu caráter e testemunho de vida cristã. Acima do critério “ser teólogo ou não” deveria está um legítimo testemunho de transformação, salvação e convicção do chamado para pregar a Palavra (em caso de dúvidas vide Pedro e tantos outros discípulos de Jesus, que mesmo sem o amparo acadêmico necessário esforçaram-se por deixarem um legítimo legado de fé, obra e doutrina). Lembremo-nos de que conhecer por conhecer não gera frutos. O bom pensamento, a intelectualidade e raciocínio teológico bem elaborados devem ser vistos e entendidos como ferramentas que podem nos proporcionar uma melhor exposição das verdades que antes de tudo devem ser vividas pelos que as proclamam. O fato de meramente possuí-las não nos dá a certeza de sermos detentores de um caráter integro e conduta ilibada.
Discordo ainda efusivamente do artigo quando o mesmo desmerece o lugar da experiência no processo de formação do caráter cristão. O próprio Senhor Jesus, em determinada ocasião, censurou os fariseus afirmando que o erro no qual insurgiam era o de não conhecerem nem as Escrituras (conhecimento sistemático), e nem o poder de Deus (experiência pessoal). Tanto a teologia quanto a experiência devem ser amigas e companheiras na jornada da fé bíblica, como um par de pernas que nos conduzem a um bom termo. Solitárias, não passam de viajantes perdidos em meio ao deserto das dúvidas e oscilações. Cabe aqui a pérola de Anselmo de Cantuária, tão comum no meio acadêmico, que sinaliza para a premissa correta ao dizer que deve-se “crer para poder entender”, afirmando assim que o primeiro passo a ser dado na jornada cristã é o da experiência, para que somente após este possamos nos atrever firmar o segundo passo no terreno do saber teológico. Finalmente, o cabedal de todo o relato bíblico e histórico, mormente relacionado ao cristianismo, nos leva a crer que a experiência, devidamente balizada pelas Sagradas Escrituras, não chega ao menos próximo de ser um aleijão dificultando o entendimento das fundamentais doutrinas da fé cristã, se, no entanto, não representar o fim da jornada, mas o início da mesma.

CIÊNCIAS INTERPRETATIVAS
2º. Não concordo com o artigo “Renovação e Doutrina”, quando afirma categoricamente que os pastores renovados tem baixo conhecimento de ciências interpretativas, tais como a exegese e a hermenêutica, chegando inclusive a ignorar quase que completamente a existência de mestres nestas áreas oriundos do movimento renovado/pentecostal local ou mundial. Antes de tudo, faz-se necessário esclarecer que a pouca divulgação de obas relevantes nestas áreas por parte de mestres pentecostais não quer dizer que elas, e muito menos eles, não existam. Creio que esse seria na verdade um problema de ordem econômico-cultural. Econômico quando se sabe que boa parte das editoras cristã que operam no Brasil ao calcular os riscos de publicar uma obra teológica de autor nacional optam por um autor já consagrado internacionalmente. Cultural quando nós que estudamos e ensinamos teologia no Brasil geralmente supervalorizamos a herança e legado teológico importado pelos primeiros mestres/missionários que em nosso país (graça a Deus) chegaram para alavanca a obra de evangelização, em quanto que ao mesmo tempo minimizamos o valor do pensamento teológico “tupiniquim” produzido por hábeis mentes mantidas confinadas nos calabouços de nossos centros acadêmicos. Sendo assim, neste caso falta a cultura da valorização do que é nosso, e não os mestres. E esse gargalo teológico é sofrido não somente por autores renovados/pentecostais, mais por escritores do seguimento histórico também. Para constatar essa inconveniente realidade basta-nos “passar vistas” nas prateleiras das nossas livrarias evangélicas para sermos surpreendidos com a ingente escassez de obras teológicas nacionais. Desenvolvemos naturalmente uma síndrome que gera em nós aversão ou desconfiança a tudo aquilo que traz o selo made in brazil (com “z” é claro).

CONHECIMENTO TEOLÓGICO
3º. Não concordo com o artigo “Renovação e Doutrina”, quando o mesmo afirma que a maioria dos pastores renovados não possuem conhecimento teológico, e os poucos que o possuem o utilizam-no meramente no campo acadêmico, e não nos púlpitos das igrejas que pastoreiam. Vejo que o colega deveria entender primeiramente que a Teologia não é um fim em si mesma, e que uma é a dinâmica do ensino academicista e outra a da Palavra ministrada ao coração do povo de Deus no momento de culto ao Senhor. A teologia é especulativa na maior parte de seu terreno, a Palavra é base sólida de edificação e despertamente da fé, “pois a fé vem pelo ouvir, e ouvir a Palavra de Deus”. A teologia favorece a reflexão, fascina a mente e massageia o ego de quem a imagina possuir, a Palavra pregada atinge o coração como espada poderosa de dois gumes. Quanto ao argumento de que o conhecimento teológico deveria ser esbanjado nos púlpitos das igrejas, contra-argumento que não sei do que valeria a mim ou aos membros da igreja que pastoreio um sermão cujo tema seja “O Pentateuco e a Teoria das Quatro Fontes”; ou em que o coração da irmã Neusa, com seus oitenta anos de idade, seria edificado se no tempo reservado a prédica o seu Pastor discorre-se acerca dos parâmetros e riscos da neo-ortodoxia barthiniana, ou ainda no que interessaria aos membros da igreja de forma geral utilizar o púlpito para expor toda a problemática do “cristocentrismo a-religioso de Dietrich Bonhoeffer”.
Vale a pena lembrar que o campo apropriado da Teologia é o estudo das verdades que na religião o homem procura vivenciar e expressar em atitudes e ações. Sabemos que a Teologia é especulativa e teórica por natureza, enquanto que o caráter da pregação deve envolver elementos práticos que influenciem a vida das pessoas no dia-a-dia em sociedade, família e igreja. Deixemos, pois, a Teologia exercer o seu papel, e a Pregação a sua função natural. A Teologia deve ser ensinada em lousas, a Palavra em púlpitos.

ÉTICA
4º Não concordo com o artigo “Renovação e Doutrina”, quando quebra princípios de ética ministerial e respeito ao expor colegas de ministério de forma inconveniente, criticando vorazmente as estratégias de crescimento adotadas por cada igreja e pastor. Parece-me que o tão referido artigo anseia de modo latente querer defender a utópica, contumaz e impraticável idéia que sugere a possibilidade terrena de uma uniformidade inviável do tão diversificado corpo de Cristo. Deve-se ter consciência de que as igrejas são diferentes, os contextos onde estão inseridas são os mais diversos possíveis. O que deveria dizer se a estratégia é correta ou não é a qualidade do fruto concebido independente de ter sido gerado em um grupo de 12, 70, ou 1000 pessoas. Não me é permitido, como pastor, dizer que este método ou aquele é o ideal para todo o corpo de Cristo. Ou que essa ou aquela estratégia deve ser cristalizada no seio da Igreja pelos séculos dos séculos, amém. Acredito que tudo o que é novo gera uma certa desconfiança em nossos corações, e nos leva a um posicionamento contrário até que o tempo traga amadurecimento e melhor compreensão dos fatos. Exemplo disso é o fato de que tão aclamada e sacramentada Escola Bíblica Dominical, idealizada por Robert Raikes, nem sempre foi o sucesso que é hoje em dia em nossas igrejas, pois “o mesmo sofreu uma forte oposição ao seu movimento, que era considerado por alguns líderes religiosos (por incrível que possa parecer) como um movimento diabólico, porque era aparte das Igrejas e era dirigido por leigos, isto é, pessoas que não tinham formação pedagógica. O Arcebispo de Canterby reuniu os bispos para considerar o que deveria ser feito para exterminar o movimento. Chegou-se a pedir que o Parlamento, em 1800, aprovasse um decreto para proibir o funcionamento de escolas dominicais. Achavam que este movimento levaria à desunião da Igreja e que profanava “o dia do Senhor”.
O Senhor Jesus ao encontrar a mulher samaritana a beira de um poço em Samaria a tira de uma terrível dúvida que era a seguinte: “onde devemos adorar”, e o Senhor com sua resposta aponta para o fato de que a própria pergunta estava formulada erroneamente, pois não deveria ser “onde” mas “como” adorar, e então afirma: “Em espírito e em verdade”. Pena que após mais de dois milênios nós ainda nos encontramos a beira de um poço discutindo acerca do monte Gerizim ou Jerusalém, enquanto que a resposta do Mestre é: Adorem de forma correta independente da estratégia usada. Se é modelo clássico, adorem a Ele! Se é modelo celular, Adorem a Ele! Se é modelo Igreja com Propósitos, adorem a Ele! Em Gerizim ou em Jerusalém, adorem a Ele em espírito e em verdade. Vejo que neste caso o bom-senso nos diria que cada pastor é livre para escolher a estratégia de crescimento que melhor for adaptável às realidades que circuncidam a comunidade local que pastoreia, atentando, porém, para as responsabilidades que ao mesmo foram outorgadas por Deus como guia do rebanho do nosso Senhor e Principal Pastor, Jesus Cristo.

EROTISMO MUSICAL
5º Não concordo com o artigo “Renovação e Doutrina”, quando o mesmo taxa de eróticos alguns termos utilizados em canções tidas “modernas”, pois esquece que o livro atribuído a Salomão que tem por título Cântico dos Cânticos tem esse nome por evidentemente, em sua forma original, se tratar de uma canção, uma música, um hino, seja como queira. Este livro sagrado que aparentemente não passa de conteúdo lúbrico, trata-se, em termos interpretativos, de uma metáfora que sinaliza o relacionamento do Noivo (Jesus) e sua Noiva (a Igreja). Se não devemos mais cantarolar canções que usam termos como os que foram nomeados pelo irmão (apaixonar, beijar, tocar...), então deveríamos não só banir dos púlpitos da Igreja como também remover do cânon sagrado textos como os escritos por Salomão que diz: “Os teus seios são como dois filhos gêmeos da gazela, que se apascenta entre lírios” (Ct 4:5), ou “
Que é qual noivo que sai do seu tálamo e se alegra, como um herói, a correr o seu caminho” (texto encontrado em outra canção bíblica, o Salmo 19,5). Tálamo segundo o “Aurélio” é o leito conjugal, sendo assim o salmista está comparando o Sol a um homem que saí para o trabalho revigorado após uma noite de intimidades ao lado de sua esposa. Interminável é o número de passagens que se assemelham a essas e que são pregadas nos púlpitos e lidas nas devocionais sem nenhum constrangimento, e não vejo porque não deveriam ser cantadas também.
Irmãos, não devemos e nem podemos deixar que o saudosismo e nostalgia nos dominem ao ponto de tirana e arbitrariamente decidirmos o que é ou não divinamente inspirado, o que deve ou não ser cantado. Lembrem-se que o único hinário oficial do povo de Deus é o livro dos Salmos, tudo o que passar disso deve ser considerado música moderna, mesmo que tenha sido escrita a quarenta anos atrás como o nosso tão dileto e significativo hino da Renovação “Obra Santa”. Existem excessos e distorções teológicas na música evangélica brasileiro, SIM. E não só na nossa música evangélica brasileira, mas em todo o mundo tem sempre alguém querendo acrescentar um “J” ou um “~” nos versos cantados. Porém não devemos estigmatizar toda uma geração de levitas pelo simples fato de ministrarem segundo uma nova perspectiva musical cujas raízes encontramos metaforizadas nas próprias páginas das Escrituras. Até mesmo porque o fato da perspectiva ser nova não significa que seja anti-bíblica e herética.

Reconheço que a Renovação, assim como outros segmentos da Igreja Evangélica Brasileira, passa por um período de mudança, conturbações e ameaças a pregação do genuíno Evangelho da graça de Deus. E que a mesma é carente de reflexões, sempre bem-vindas, se pertinentes, bem fundamentadas, fruto de um debate equilibrado e ciente da imensidão, diversidade e realidade do contexto evangélico brasileiro.

Outrossim, a problemática que envolve a Igreja Evangélica Pentecostal Brasileira seria melhor delimitado se entendêssemos que não se trata de uma via de mão única como muitos a imaginam, pelo contrário. Pois, enquanto por um lado nós temos resquícios de superstições e uma descomedida ênfase à experiência como o final de tudo, temos do outro lado um fatídico, cansativo e pedante discurso teológico, que inclusive chega em determinada instancia a ser “trolológico” e esfomeado a ponto de insistir em não dividir o prato com a experiência espiritual e pessoal da qual cada cristão deve ser portador. Tenhamos, pois, muito cuidado queridos amigos e irmãos renovados, para que na ânsia de resolver o problema não acabarmos por, a grosso modo falando, “matar o boi junto com o carrapato”.

Por fim, creio ser conveniente deixar registrado o texto do célebre Thomas de Kempis, extraído do seu clássico “Imitação de Cristo”, que em nosso zelo e fervor em defendermos o que cremos nos orienta que: “Não podemos confiar muito em nós, porque frequentemente nos faltam a graça e o critério. Pouca luz temos em nós e esta facilmente a perdemos por negligência. Amiúde procedemos mal e nos desculpamos, o que é pior. Às vezes nos move a paixão e pensamos que é zelo. Repreendemos nos outros as faltas leves e nos descuidamos das nossas maiores. Quem bem retamente avaliasse suas obras não seria capaz de julgar os outros com rigor”.

Que Deus nos Abençoe e nos una, apesar das diversidades.

Pr. Wendell de Carvalho
Diretor do SeTeBaN - Piauí

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